Depois do adeus

Pedro Pereira
6 min readMar 19, 2022

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O mundo democrático falhou no apoio a uma verdadeira democratização da Rússia após a dissolução catastrófica do império da União Soviética em 1991, contrariamente à progressiva adaptação dos países da antiga Cortina de Ferro e da Ucrânia aos padrões da democracia liberal, do Estado de Direito e da economia de mercado internacional.

Hoje, a Federação Russa é o principal desestabilizador da Europa, Ásia Central e parte do Médio Oriente, um dos principais financiadores de repressões populares (como são exemplo o apoio ao regime sanguinário de Assad, ou o ataque a protestos democráticos pacíficos na Bielorússia e no Cazaquistão) e de partidos de extrema-direita no Ocidente. A Rússia de Putin é uma ameaça ao mundo democrático e aos direitos humanos, garantia de liberdade individual e dos povos.

Mas a Rússia de Putin não durará para sempre.

Quase um mês após o início da tentativa falhada de blitzkrieg à Ucrânia — numa renovada violação da integridade territorial dum país soberano, à revelia do Direito Internacional e de preceitos básicos das Convenções de Genebra — pautada pelo bombardeamento de edifícios residenciais e espaços públicos civis, escolas e estabelecimentos de saúde, a agressão russa ao povo ucraniano parece ter chegado a um ponto de estagnação.

Nas condições atuais, marcadas por uma campanha de desinformação e fake news agressivas pela Rússia, uma resistência inabalável do povo ucraniano na defesa pela sua liberdade e direito de decidir o futuro, e negociações sem evolução palpável, torna-se ainda imprevisível o desfecho final. O mundo democrático anseia pela vitória final da Ucrânia, mas não é excluível uma alteração grave do status quo por parte dum agente que já se mostrou impresivível, irracional e capaz de escalar o conflito sem nenhum objetivo particular.

Putin e o seu regime são, só uma ameaça ao futuro duma Ucrânia soberana, livre e europeia, mas uma declaração de guerra a todo o mundo livre e democrático, particularmente no Ocidente. O apoio armado à insurgência comunista na Transnístria, a brutal repressão da Chechénia com a destruição total de Grozný, a invasão do território soberano da Geórgia na Abcásia e Ossétia do Sul e a invasão e anexação ilegal da Crimeia deram sinais claro de que a Rússia pós-URSS mantinha o ímpeto imperialista, coletivista e autoritário do seu antecessor. Depois de ter praticamente ignorado todos estes avisos, o mundo democrático acordou com as garras de Putin a bater à porta, impedindo a transformação da Ucrânia de acordo com a vontade soberana do povo e com ameaças à Finlândia, Suécia, Bósnia e Herzegovina e a todo o Ocidente.

O falhanço profundo da invasão russa de 2022 marcou o início do fim do império de Putin. O seu projeto de aniquilação completa da Ucrânia não foi alimentado por nenhuma provocação do Ocidente, vejamos: a NATO nunca demonstrou abertura à entrada da Ucrânia da aliança no curto ou médio-prazo (foi ficando claro ao longo dos anos, principalmente na cimeira de 2008, na qual Vladimir Putin participou como convidado) e ficou selada com a insurreição no Dombass iniciada em 2014 com o apoio da Rússia. Também a adesão da Ucrânia à União Europeia nunca aconteceria em menos de 10 a 15 anos, na medida em que as disputas territoriais com a Rússia na Crimeia e a insurreição no Donbass limitariam o acesso, assim como a Ucrânia não era até ao início da nova invasão candidata à adesão.

O que assusta Vladimir Putin não é necessariamente ter a NATO à porta (teria uma fronteira muito maior caso anexasse a Ucrânia do que se a Ucrânia aderisse ao bloco de defesa atlântico), nem a putativa adesão à União Europeia — que se tornou inevitável no longo prazo após a revolta popular Euromaidan em 2014. O que ameaça o regime imperialista de Putin é o estabelecimento de democracias maduras, liberais e funcionais na vizinhança imediata da Federação Russa.

Por essa mesma razão invadiu a Geórgia, quando o país não estava perto de aderir à NATO ou à UE, mas começava a amadurecer a sua democracia e a liberalização económica e social. Por essa mesma razão ajudou Łukašenka esmagar os imponentes protestos pró-democracia na Bielorrússia, apesar de o país nunca ter estado perto de aderir à NATO ou à UE. Por essa mesma razão apoiou a supressão violenta dos protestos pró-democracia no Cazaquistão em 2022. Por essa razão tem que garantir que a democracia ucraniana nunca se possa enraizar, amadurecer e desenvolver. A democracia é a verdadeira ameaça a Putin.

Acredito, contudo, que a Ucrânia será o fim da Rússia de Putin. O mundo democrático acordou e tem a seu lado um povo de coragem incomensurável e que ama a liberdade como poucos povos na História. É urgente, por isso, que o mundo democrático se prepare para a Rússia pós-Putin.

Não podem ser repetidos os erros do pós-URSS quando Putin cair e a Rússia puder regressar ao mundo democrático — onde nunca esteve verdadeiramente de forma estável e prolongada. A substituição dum Estado todo-poderoso por um Estado corporativo, corrupto e cleptocrata, gerido por oligarcas que dividiram entre si o poder político económico da Rússia com Putin cria um desafio ainda maior que o pós-URSS para o estabelecimento duma democracia liberal, moderna e estável nos territórios da Federação Russa.

Após o isolamento da Rússia no início do século e as privatizações indiscriminadas e sem escrutínio que mergulharam a Rússia numa economia clientelar de oligarcas, geriu descrédito pelas políticas de democratização e liberalização — que efetivamente nunca aconteceram na Rússia de Putin, principalmente nas dimensões política e social — defendidas pelo mundo democrático. Existe hoje na sociedade russa a sensação de que serão sempre vistos pelo Ocidente como “inimigos” ou “diferentes”, razão pela qual a única reação possível é a do restabelecimento do poderio militar.

A imposição de severas sanções económicas ao regime imperialista de Putin — com crescentes características de evidente fascização —pode adensar esta noção popular, que vem sendo alimentada pela propaganda russa doméstica. Este é, por todas estas razões, o momento para fazer mais e melhor, trazendo para o mundo democrático todo um povo que nunca conheceu a democracia liberal e nunca viveu sob as suas liberdades.

Porquanto, é essencial a:

  1. apoio à realização de eleições livres, democráticas e participadas na Rússia e Bielorrússia com observadores internacionais após a libertação de todos os presos e exilados políticos e re-legalização de partidos de oposição democrática

2. criação dum roadmap para a rápida readmissão da Rússia democrática ao Conselho da Europa e demais instituições das quais foi removida no âmbito das sanções impostos pelo mundo democrático, e prevendo a criação dum plano de integração económica e diálogo político entre a União Europeia, a Rússia e demais países europeus, candidatos ou não à adesão à UE

3. integração da Rússia em programas da União Europeia com parceiros terceiros, nomeadamente o programa ERASMUS+, ajudando à integração da nova geração no espaço europeu

4. apoio logístico e financeiro à reconstrução das instituições democráticas no país, aproximando-as dos melhores standards do mundo democrático. Inclui-se a necessidade de reformulação do sistema político e eleitoral, acompanhado de descentralização do Estado

5. entrega de garantias de segurança à Europa e à Rússia, através da redução da militarização do país sem violar as garantias do direito de autodefesa, garantindo um teto máximo de despesa em questões militares em não superior ao combinado da NATO: 2-3%. Deve ser retomado o diálogo em matérias militares entre a NATO e a Rússia, aumentando a transparência das ações de ambos e a inibição de exercícios militares próximos das fronteiras

6. plano de reforma económica, eliminado monopólios privados dependentes do poder político e limitando a existência de oligopólios através de processos de simplificação burocrática e reforço das instituições de regulação de mercado. Um programa de privatização económica, revertendo as renacionalizações empreendidas por Putin e Medvedev‎ e que limitam a capacidade de crescimento e evolução económica deve ser apresentado de forma transparente, cautelosa e sob forte escrutínio institucional e popular

O objetivo no curto prazo tem que ser a mudança de regime, implementada pelo e para o povo russo e de acordo com a sua vontade livremente expressa, e a reabilitação da Rússia enquanto Estado-pária, retirando-se de todos os palcos de conflito europeus e internacionais. No médio e longo prazo, a integração da Rússia no mundo democrática trará uma prosperidade nunca vista ao seu povo, e uma verdadeira paz no continente europeu. Uma paz de Lisboa a Vladivostok. E talvez num futuro longínquo possamos assistir ao hastear do ouro sobre azul em toda a Europa.

Depois do adeus, o povo russo quererá saber quem é e o que faz aqui. O mundo democrático e, em especial, a Europa, não o podem abandonar nem esquecer.

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