Afinal não somos todos iguais

Pedro Pereira
5 min readMar 18, 2023

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Há menos de um ano versava levemente sobre a relevância da celebração do mês do orgulho LGBTQIA+, já na segunda década do século XXI e num país que tem dos quadros legais mais progressistas e liberais do mundo na proteção dos direitos, liberdades e garantias e da sua equiparação legal a qualquer outro cidadão. (https://www.publico.pt/2022/06/25/p3/cronica/mes-orgulho-lgbt-faz-sentido-2010687)

Hoje ainda estou certo que continua a fazer sentido. Não obstante, não apenas pela promoção e defesa direta dos diretos LGBTQIA+ e da sua total equiparação a qualquer quadro legal irrespetivamente das características intrínsecas da pessoa, mas também porque dentro da própria comunidade LGBT reside um ódio e uma intolerância profunda para com as pessoas LGBTQIA+ que não se regem pelo mesmo sistema ideológico dos “CEOs das causas” sociais no nosso país.

Não surge como surpresa para ninguém que a maioria dos membros individuais e coletivos das organizações de eventos dirigidos a pessoas LGBTQIA+ — com destaque para as marchas do orgulho, ocorrendo essencialmente no mês de junho em memória dos eventos no Stonewall Inn na noite de 28 de junho de 1969 — são afetos, subordinados ou próximos a partidos como o Bloco de Esquerda, PCP, MAS e outras forças partidárias da esquerda política. Foi durante a governação dum governo do Partido Socialista e após iniciativas do Bloco de Esquerda que se legalizou o casamento por casais do sexo sexo, a adoção por casais do mesmo sexo ou alterações no sentido da remoção doutras limitações e discrimanções legais, nomeadamente para pessoas trans.

Já divaguei mundos e fundos sobre como partidos como PSD ou o CDS entregaram as causas das liberdades sociais a movimentos partidários coletivistas, transformando temas baseados no reconhecimento da dignidade individual da pessoa e da equiparação de todos os cidadãos perante a lei e a sociedade. Mas é precisamente daí que partiu a legitimação da promoção da interseccionalidade mandatória entre a defesa de liberdades sociais e a sua imprescindível acoplação a sistemas de valores económicos e políticos.

Do acantonamento de políticas sociais com amplo apoio na sociedade e — diga-se — perfeitamente consequentes com os princípios da democracia liberal a um dos cantos do espectro político (definamo-lo como uma linha bidirecional, uma ferradura, um caracol ou qualquer outra imaginativa metáfora visual) resultou que hoje em Portugal a organização de eventos como a Marcha do Orgulho se sintam validadas para excluir da participação das mesmas organizações político-partidárias com manifestos pró-LGBTQIA+, associações cívicas, representações nacionais ou organizações de turismo e comércio.

Eventos que são, na generalidade dos países ocidentais, encaradas como momentos de tolerância, integração da sociedade numa causa que deveria ser universal e de celebração das conquistas alcanças (não esquecendo, naturalmente, os avanços ainda por consumar), são em Portugal encarados por muitos como uma oportunidade de hostilização política, autopromoção de estruturas partidárias por via de associações e movimentos subalternizados e vilificação de forças partidárias que não subscrevem a mesma visão económica, não obstante defenderem os mesmos princípios de liberdade individual.

O poder de associações ligadas à esquerda política parlamentar e extraparlamentar é de tal forma forte nas estruturas organizativas das Marchas do Orgulho LGBTQIA+ que se arrogam o direito de reverter decisões de aceitação de participação formal de partidos liberais — assentando a sua decisão que se sobrepõe ao inicial acolhimento em comentários de membros individuais nas redes sociais ou de votos de abstenção em medidas que, apesar de dirigidas a pessoas LGBTQIA+, não correspondem àquela que seria à sua visão.

Contudo, não se incomodam estas organizações com as mesmas condenáveis declarações quando vêm de dirigentes de partidos dos quais alguns dos seus integrantes se encontram próximos, de atos desses partidos ou até ignorando votos contra nas mesmas propostas nas quais o voto de abstenção doutro partido justificou a sua não-presença. Não se incomodam com cross-overs de bandeiras do movimento LGBTQIA+ com simbologia de ideologias e estados que hostilizaram — e hostilizam — as pessoas queer e que, inclusivamente, as ilegalizavam, perseguiam, hostilizavam e matavam.

No ano passado, depois duma aprovação inicial, a organização da Marcha do Orgulho do Porto recusou a participação da Iniciativa Liberal, alegando que a sua presença seria considerada uma “contramanifestação”, com base em declarações de militantes e votos de abstenção na Assembleia da República em propostas dirigidas a pessoas LGBTQIA+. Este ano, o mesmo cenário se irá repetir, não obstante a IL ter aprovado os projetos de lei para a criminalização das tentativas de conversão sexual ou permitido a discussão em sede de especialidade de diplomas na área da autodeterminação de jovens em processo social de transição sexual e/ou de género em ambiente escolar — contrariamente a, por exemplo, o Partido Comunista Português que se absteve (o único partido a não votar favoravelmente!) na criminalização das ditas “terapias” de conversão, não obstante continuar a ser recebido de braços abertos. Demonstrada fica, porquanto, a parcialidade da lógica argumentativa alegada pelas organizações da Marcha do Orgulho que, não surpreendentemente, colocam interesses partidários acima dos valores que dizem defender e promover.

A luta pelos direitos LGBTQIA+ tem que ser abrangente, tolerante, agregadora e universal. A abordagem da comunidade LGBTQIA+ como uma massa uniforme e homogénea, que deve, pelas suas característica intrínsecas e involuntárias, subscrever programas políticos e económicos apenas e somente porque quem se arroga como um autointutulado representante da comunidade assim o define transforma uma causa positiva num jogo de soma negativa e hostilizador de muitas pessoas que dizem querer representar e defender.

Cada pessoa LGBTQIA+ vale-se a si mesma e é única. Não pode ser violentada verbal- e fisicamente porque acredita no mercado livre regulado ou em parcerias público-privadas na saúde, porque defende um sistema de valores e crenças políticas contrárias à esquerda identitária e coletivista, porque quer ser vista como intrinsecamente digna e não como uma manta de retalhos de etiquetagens involuntárias. Cada pessoa LGBTQIA+ tem o direito de ser quem é, sem coações, e de fazer parte de movimentos e lutas cívicas que procuram — ou pelo menos assim o arrogam — libertá-las das amarras da desigualdade legal, da opressão da sociedade e da discriminação histórica.

Por tudo isto, não só ainda faz sentido celebrar ainda faz sentido celebrar o Mês do Orgulho mas ainda faz sentido que todos os que assim o entendam nele participem. Marchem. Falem. Mostrem-se. Até ao dia em que todos formos iguais, ainda faz sentido.

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